quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Para quem não viveu...

O grande movimento das "Diretas Já" nos anos 80, impôs à democratização brasileira uma nova pauta política. Naqueles dias, o povo que desejava a mudança saía cantando dos comícios os versos de Geraldo Vandré. "Vem, vamos embora, que esperar não é saber, quem sabe faz a hora, não espera acontecer". A história assim foi escrita por todos nós, contemporâneos de uma época que respirava o desejo de mudança. Leia o texto de Andréia Moura sobre esse página da nossa história.
 

Diretamente na imprensa
Andréia Moura
"Um, dois, três, quatro, cinco mil, queremos eleger o presidente do Brasil." Sob a voz de milhões de brasileiros essa frase se tornou o jargão das Diretas Já. Como o choro do recém-nascido, o senso cívico da população renascia, forte, frente à ameaça de uma ditadura sem fim e a queda do mito de País desenvolvido sustentado hipocritamente pelo Estado.

Em 1983, o País vivia uma crise "inesperada". A economia brasileira estava em franco declínio passando rapidamente à depressão econômica. Uma situação econômica insustentável. Por outro lado, a censura e a repressão impostas por tantos anos de ditadura fortaleceram a população e o desenvolvimento de movimentos populares urbanos. Munido pela revolta e apoiado pela situação nacional, o povo gritou pelas eleições diretas.

No comando, um regime incapaz de cumprir suas próprias leis. Nossa Constituição era desrespeitada desde seu artigo primeiro: "Todo poder emana do povo e em seu nome é exercido." A campanha das Diretas Já entrou para a história como a produtora dos maiores comícios já vistos no Brasil. Nem antes, nem depois uma causa uniu tantas pessoas.

Situações assim não são corriqueiras, são encruzilhadas históricas, marcos políticos especiais. Um acontecimento como a campanha pelas diretas só pode ser compreendida se estudada como algo que veio à tona numa conjuntura crítica, estrelando sob diferentes crises sem as quais ela não teria sido possível. Porém, o que deveria ter sido um prato cheio para a imprensa nacional, tornou-se, em alguns aspectos, uma "mancha ética" para as gerações futuras.

Em 17 de abril de 1984, no grande comício de São Paulo, Ulysses Guimarães, o "senhor das diretas" como era conhecido, emocionou dizendo: "A Bastilha do colégio eleitoral caiu hoje, aqui em São Paulo." Bom teria sido, se também a bastilha da dissimulação que cerca a imprensa tivesse ido ao chão. A atuação de nossa imprensa nesse movimento foi vergonhosa.

O único grande jornal a se posicionar ativamente, e até mesmo agressivamente, foi a Folha de S. Paulo. Em apoio irrestrito à manifestação popular, a Folha não poupou ataques ao governo. Suas reportagens e editoriais enalteciam a coragem e união do povo e classificavam nosso regime como "imoral". Em uma de suas matérias, publicada em 27 de novembro de 1983 e intitulada "Presidente, quem escolhe é a gente", chegou a chamar nosso governo de "autoritarismo que oscila entre a realidade e a safadeza".

A cada dia as pessoas liam a Folha procurando registrar na mente cada momento histórico. As frases, as lágrimas, coisas que o jornal procurava retratar profundamente. Publicava frases de impacto que recolhia nas ruas, nos comícios. "Não, não, não pro colégio do João", "o nosso presidente está aqui com a gente".

A união histórica de interesses era alardeada. "Não há rico ou pobre, há apenas brasileiros". A Folha causou impacto ao colocar na matéria "Rio faz maior comício da História do Brasil", publicada em 11 de abril de 1984, frases de Tancredo Neves. "O que penso estar reunido nesta praça pública não são apenas um milhão de pessoas, mas 130 milhões de brasileiros que se comprimem nas praças de todo o País para que não continuem lhes usurpando o direito de escolher o presidente da República."

Porém, que fique claro: os interesses do povo nunca foram os da elite, nem mesmo nas Diretas Já. É necessário que se tire a venda e que se perceba que as Diretas Já eram convenientes para a elite também. Os poderosos de fato são expertos. Se haveria uma eleição, "antes façamos nós do que o povo". Como na Revolução Francesa, nosso povo foi mero instrumento.

A Rede Globo e O Estado de S. Paulo não manifestaram opiniões até que a situação ficou patente demais para ser ignorada. Em 10 de dezembro de 1983, Roberto Marinho foi procurado pela Folha e disse não ter opinião formada sobre o assunto. Outros meios de comunicação quando questionados sobre estarem sendo censurados, negavam. Questionados pela omissão, explicavam: "Não sou maluco de arriscar-me a perder a concessão governamental para continuar com minha rede de televisão."

No comício de 11 de abril, no Rio de Janeiro, a Globo percebeu que perdia audiência e resolveu passar para o lado das Diretas Já. Transmitiu em cadeia nacional partes do comício. Depois, preparou uma monstruosa cobertura para o comício seguinte, que seria em São Paulo em 17 de abril. O povo não se conteve. Não depois de ter assistido ao boicote que a rede havia meses. "O povo não é bobo, fora Rede Globo", era o grito de guerra misturado às vaias ouvidas em pleno comício.

É preciso perceber que a verdade social não é estática, ela é dinâmica. É por isso que a imprensa é a "mão que governa o mundo". É a formadora-mor de opiniões e não se pode dar ao desfrute de boicotar um movimento popular desses. A proteção aos poderosos é vergonhosa e em certo ponto humilhante para o jornalismo.

Uma coisa é certa, ainda há aqueles que tentam ser honestos. A revista Veja manteve a cobertura mais imparcial de todos. Sem tomar partido, oscilou entre as diretas e o governo. Hora protegendo, hora atacando. Centralizou suas reportagens no povo evitando confrontos políticos.

Em uma de suas principais matérias de capa, "Quero votar pra presidente", publicada em 1.° de fevereiro de 1984, deixou sua "neutralidade" clara. Num primeiro momento atacou. "O ministro da Justiça, Ibrahim Abi-Ackel, achou a manifestação normal e corriqueira. Tanto o normal quanto o corriqueiro da vida política nacional, há muito não sofriam impacto tão forte"; num fragmento posterior alfinetou o povo, "no palanque houve momentos de grande confusão. À certa altura, Franco Montoro perdeu a paciência. "Quem está mandando aqui?", indagou aos berros. "Se não tiver ninguém, eu assumo."

Na edição de 18 de abril de 1984, "O brado retumbante" tentou imprimir realidade à empolgação popular colocando em destaque uma frase de Fernando Henrique Cardoso, então senador: "Se a emenda Dante de Oliveira não passar, haverá uma crise sem precedentes. Quem poderá negociar em nome dessa gente que aí está, convencida de que as diretas estão no papo?"

É claro que não se pode dizer heroicamente que a tentiva de neutralidade da revista provém de seu forte senso ético. Mas, se por prudência, se por medo, não interessa. Antes abordar o assunto "pisando em ovos" do que simplesmente ignorá-lo como alguns preferiram fazer.

Ética? Não se pode falar em ética quando se fala em luta. Aquele era um momento histórico de mudança. O povo sabia que as Diretas Já eram um passo decisivo para a superação do regime. Ser ético quando se protege, quando se apóia, quando se inflama, ou quando se ataca? Impossível. Em nenhuma das partes a ética jornalística foi perfeitamente respeitada. Uns pecaram por proteger, outros por atacar sem dó. Mas a verdade é que estavam lutando pelo que acreditavam. E mais importante que ser ético é ter ao menos algo em que acreditar.

O movimento das Diretas Já não alcançou seu objetivo, mas também não foi em vão. O Brasil jamais será o mesmo depois dele. Foi derrotado em seu objetivo imediato, mas ainda assim impôs à democratização brasileira uma nova pauta política. Infelizmente, não uma nova imprensa, uma imprensa menos partidária. Naqueles dias o povo saía dos comícios cantando os versos de Geraldo Vandré. "Vem, vamos embora, que esperar não é saber, quem sabe faz a hora, não espera acontecer." Esse deveria ser nosso lema, o lema da nova geração jornalística. "De boas intenções o inferno está cheio". É preciso dar um passo em direção à mudança. (www.canaldaimprensa)

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